quinta-feira, 8 de junho de 2017

O Túnel da Luz



Os mais novos talvez tenham lido o título e pensado que vinha aí uma crónica sobre estranhos pontapés de Hulk em stewards na Nova Luz, mas não é nada disso. Podem sair daqui e voltar para o Hugo Gil, Pedro Guerra ou Guachos Vermelhos onde certamente verão um benfiquismo orelhístico de grande monta. Não, o túnel da Luz é outra coisa.

O Túnel da Luz estava à nossa espera em dia de jogo. Jibóia de betão que já antecipava a chegada do Povo Glorioso vindo de Bragança, de Chaves, de Braga, de Coimbra, de Faro, de Beja, de Castelo Branco. Já sabia que os benfiquistas do Porto viriam, que os benfiquistas de Peniche chegariam, que os benfiquistas de Elvas haviam de voltar. O país encontrava-se no Túnel da Luz e cantava.

Mas antes comia e bebia onde agora é o Colombo. Deixava o Túnel em descanso à espera. Comíamos e bebíamos naqueles terrenos à solta. Gente que acendia fogueiras, gente sentada em bancos de madeira em redor de barracas de onde saíam cheiros de chouriças e caldo verde. As carnes na brasa, a gordura a pingar para as camisas, a entremeada a entremear a viagem e o jogo de bola. Um puto trouxe uma bola e deu-lhe 100 toques sem deixar cair na lama onde hoje é a Bershka. Um Pai abraçava o Pai, os dois com copos de vinho nas mãos onde hoje é a Worten. Mulheres davam beijos aos netos onde hoje é a Fnac. Três cães vestidos à Benfica farejavam cadelas onde hoje é a Portugália.

O túnel ali esperava, em coração de cimento, alcatrão, luzes e areia. Os benfiquistas iam percorrendo-o a conta-gotas, vindos da gastronomia benfiquista. Ia enchendo. Já se viam fumos a sair do Estádio, os cânticos da Luz já ecoavam, a Mística fazia a sua mezinha, hipnotizando o Povo Glorioso em direcção ao Benfica. Íamos por dentro dele e cantávamos.

Depois, o jogo.  A noite europeia ou a goleada nacional. Às vezes, a desilusão, a tragédia, a tristeza. Mas nem assim o Túnel da Luz desistia. Ganhando (quase sempre) ou perdendo (quase nunca), saídos da Luz ansiávamos por aquela acústica. Mas custava chegar. O Povo Glorioso com o seu exército de 100.000 pessoas demorava-se a chegar ao Túnel. Pais punham os filhos nos ombros como se eles fossem óculos de submarino. Nós, putos, rodávamos a 360 e dávamos as coordenadas aos pais sobre o tráfego glorioso. Ainda faltava uma hora para o Túnel da Luz. Preenchíamo-la com discussões técnico-tácticas e críticas às substituições do treinador mesmo que tivéssemos ganhado por 6-0.

Finalmente, o Glorioso Túnel da Luz. Um orgasmo. A acústica sem limites para aguentar milhares de benfiquistas a cantar músicas do Benfica. Dois orgasmos. 1904 orgasmos juntos a estalar o betão. O Benfica é a mais maravilhosa maluqueira do mundo.


4 comentários:

jorgen80 disse...

Há textos belos. Este é um deles.

Águia Preocupada disse...

Eloquente este texto! Parabéns Ricardo!
Veio-me à memória os tempos já longínquos em que me iniciei nestas travessias desse túnel, enlameado, em obras mas que já nos enchia de orgulho!
O Benfica era grande! Comandado por gente que sentia e amava o clube como um pai ama um filho, como uma mãe protege a sua prole!
Infelizmente, esse teu, meu, nosso Benfica não existe mais. Foi engolido e triturado com mandíbulas de oportunismos e interesses que em nada dignificam a memória desse nosso Benfica desse túnel e desse estádio grandioso e mítico!
Os tempos mudaram... Neste caso, para pior!

JotaPê disse...

Oh Ricardo,
Tu pareces ironizar quando mencionas hugo gil e pedro guerra. Tu achas que eles são bons benfiquistas? Eu cá acho. Defendem o clube com unhas e dentes, sempre num estilo que caracteriza a excelência da postura que um benfiquista deve ter. Para além disso, são homens de carácter e isentos...

ChakraIndigo disse...

Excelente texto, grandes memórias que me trazem, mas era desnecessário falar de outros bloggers que também são benfiquistas.

O Benfica tem como divisa E pluribus unum, e isto quer dizer que tanto cabem nele o Ontem, o Guachos ou o Hugo. Chama-se democracia, mesmo que nalgum deles não habite a democracia.

Viva o Benfica, um Benfica sem fundamentalismos.